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Foto do escritorSonaira D'Ávila

Fome de casa

Atualizado: 12 de out. de 2019


Caligrafias

“-Um mês! Já faz um mês que estou aqui na Alemanha". Já?

Nem bem tinha direito desfeito as malas, Ela estava ainda no Rio, nos últimos preparativos para a viagem. No momento de empacotar tudo, um amigo telefonou e perguntou se tinha a receita da pizza de sardinha- uma receita de família. A pergunta, parecia um chamado, de uma urgência que surgia e Ela precisa procurar.

Tinha uma vaga noção de onde estaria guardada.

No armário do quarto dos fundos, na prateleira de livros em cima da mesinha no canto. Ou algo assim.

Parou tudo e lá foi Ela a caça ao seu livrinho de “sabores”, um caderno fininho preto que guardava as receitas de que mais gostava da família.

Ela jurava que estava por ali. Quase desistiu até que o encontrou na prateleira acima dos olhos.

Existem coisas que nos transportam para um lugar secreto, só nosso. Ela abriu o caderninho, como quem abre, sem saber, uma porta por muitos anos fechada.

E de súbito Ela as viu. Primeiro as letras, as caligrafias, depois as receitas, e por fim as mãos escrevendo.

Ah, as caligrafias! Que coisa mágica. As letras redondinhas, desenhadas como há muito não se vê.

Ela mesma quase não escrevia “a mão”.

Tempos modernos.

As imagens se apressavam em pular das páginas todas juntas, cada vez mais rápidas, umas por cima das outras e eram recheadas de gostos e cheiros. Salgados, azedos, e doces muitos. Amargos e picantes nunca. E Ela podia jurar que ouviu vozes.

O livrinho não passava de uma coleção de 9 ou dez receitas, selecionadas pelo paladar de criança mas continham um mundo de sabores, de uma memória que Ela nem sabia que existia.Um feminino esquecido.

Nas páginas amareladas do livrinho estavam as duas ali, vivas.

-Esta é a letra da vó e esta a da mãe- Tinha certeza.

Ela as reconheceu, e num piscar de olhos estavam as duas lá.

A vó e a mãe.

Ela se surpreendeu como ainda conseguia lembrar do que a mais de 30 anos não via.

Então, Ela se alimentou de ontem, de um amor temperado na boca do fogão. Digitou a receita para enviar pro amigo, e sorrindo, colocou seu pequeno tesouro no mesmo lugar em que estava. Na altura dos olhos.

Saiu para as últimas compras antes da viajem para a Alemanha e na volta fez a pizza exatamente como a da receita da família.

Convidou a irmã para lanchar e sem avisar serviu uma fatia com café.

-“Pizza de sardinha!” -exclamou a irmã sorrindo.

-“Igual a de casa”- disse ainda já pegando um segundo pedaço.

Ela feliz, pensou: “É, a gente tem fome de casa!”

E a receita seguiu com Ela, no coração.

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