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Tamanha perfeição

Atualizado: 12 de out. de 2019


Finsbury Park

Recém formada em Letras, ao chegar em Londres, logo adquiri o hábito de andar de metrô até alguma estação cujo nome me encantasse. Meu único receio era reencontrar rostos que pudessem me classificar como a vagabunda que vagava nos vagões. Teria sido um mau emprego de figura de som, já que o que fazia mesmo era procurar um amor. Alguém por quem me apaixonar. Qualquer pessoa bonita era descartada. Imediatamente e com preconceito assumido. Buscava inteligência, mas isso era difícil a olho nu. Certo dia, sentou-se na minha frente o homem mais bonito do mundo. Prendeu a minha atenção pela impossibilidade humana de tamanha perfeição. Nada, nada de errado com ele. Era de um superlativo tão impressionante que não era possível ignorá-lo por mais que merecesse. Estudei o rapaz por completo, mas com o distanciamento natural de quem não se seduz por beleza, especialmente as óbvias.

Tinha pés firmes e despojados que seguravam pernas duras e contornadas por abundante juventude. Os cabelos eram belíssimos: castanhos numa bagunça irresistível, tocados e retocados por pedaços que teimavam em cair nos olhos expressivos, azuis, médios, presos por uma sobrancelha feito um trem descarrilhado. Bocejou. Lá dentro dentes frescos, inteiros, guardados pela boca rosa. O nariz era incorreto: de uma harmonia que nariz nenhum deveria ter. Nariz precisa ser estranho, engraçado, torto, senão a beleza cansa. Os braços eram firmes capazes de agarrar amores com desejo. Mas talvez fosse incapaz de ver seu amor, deslumbrado por si mesmo. Voltei à cabeça. Oca, de certo. Finsbury Park se aproximava. Ele se agitou. Só ali percebi: lia uma livro! Imaginei que leitura desgraçada era aquela apoiada por mãos tão espalhadas. O metrô foi parando. Ele buscou a mochila e fechou o livro. "Ulysses" (James Joyce).

De certo ele não entendeu uma palavra no texto. Não há perfeição possível.

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