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Mata tempos

Atualizado: 12 de out. de 2019


Tenho estado ocupada. Tenho ficado velha também, chorando muito de emoção, parece até que vou morrer, diria minha tia avó, a tia Nair. Há uns meses chorei ao ouvir uma sala de aula falando inglês e executando um programa que eu propus. Fiquei emocionadíssima, coisa esquisita mesmo.

Dos meus mata tempos favoritos, coisa de sala de dentista, é olhar os sites de imóveis de Londres.

Vou lá nos lugares onde morei, Balham, Clapham, pra treinar a memória. (Uai, não me lembro dessa rua.) Recém chegada da Itália, namoro concluído com um napolitano e namoro concluído com um romano, não ao mesmo tempo, o namoro, achei o inglês que hoje é meu marido. Noite de sol no pub, eu ainda com a temperatura de Capri nos ombros, trocamos telefones, beijos no rosto e promessa de um jantar. Meses depois eu lá, na casa dele, presença frequente do número 136 Cavendish Road.

Na porta do prédio eu ficava lá olhando os sobrenomes do top flat. Eram o dele e do melhor amigo dele. Feito uma menina de quarta série, imaginava meu nome seguido do sobrenome dele. Um dia, quando era uma sexta, cheguei e lá estava no quarto dele uma foto enorme de nós dois. Tínhamos só um mês de namoro. Fiquei comovida, não a ponto de chorar porque ainda não estava ficando velha. Foram anos naquele flat de solteiro dele e eu conhecendo o sarcasmo, a ironia, banter que predominam no nosso grupo de amigos ainda. Até hoje me pedem pra falar "jewelry", que sai com um sotaque dos diabos!

Eu nem estava no dentista, mas estava passeando pelo site de imóveis quando me deparei com 136 Cavendish Road para alugar. A sala no início dos nossos tempos de formalidades, o quarto, o banheiro estreito, a cozinha e seu café fresco aos sábados e domingos carregados na cama com a esperança e investimento de amor. Vi pairar nas fotos do site o nosso amigo, o melhor amigo do meu marido. Ele que mês que vem faz 1 ano que decidiu ir embora. Um ponto final duro que nos ecoa até hoje. Não aguentou a vida, era pesada demais pra ele.

Ontem, em Londres, fazia um sol de outono desses que nos fazem até acreditar em Deus, de tão lindo. Pensei nele. Pensei na falta que nos faz e no meu marido colocando a gravata preta pra enterrar boa parte do próprio amor. Pensei que talvez , se ele tivesse aguentado um pouquinho, poderia estar vendo comigo o dourado nas folhas, Green Park generoso, a exposição do Matisse, o próximo campeonato de rugby.

Porque sei lá, fico achando que , por maior que seja o peso, o inverno só faz sentido porque nos prepara pra primavera.

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