“Viajar, pergunta o personagem de Delatour, não é entregar-se ao ritual (ainda que simbólico) do canibalismo?... Nesse convívio com o estranho, o narrador privilegia o olhar; o desejo de possuir e ser possuído, a entrega e a rejeição, o temor de se perder no outro.” (p. 101), A cidade ilhada, de Milton Hatoum
O destino é simples: Maceió. Mas a expectativa, imensa: dirigir-me para o sul e vislumbrar a chegada do rio São Francisco ao oceano Atlântico (foto acima) . Desejo antigo.
Finalmente, testemunhei esse acontecimento. Não através de um simples bate e volta de Maceió à foz do Velho Chico, mas por meio de uma viagem que impos o seu próprio tempo.
Minha primeira parada foi em Marechal Deodoro, cidade fundada em 1591, (foto acima). Composta por uns 52 mil habitantes, me pareceu uma joia rara. A casa natal do Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do Brasil, a lagoa de Manguaba, na parte baixa da cidade, as igrejas seculares e o casario colorido e alegre, sem dúvida, definem o espírito dessa antiga capital do Alagoas.
Pacata e singela, caminhar por entre suas ruas implica voltar no tempo. Implica sentir o sol forte e se proteger com um guarda-chuva, objeto imprescindível naquela região. Implica admirar do alto, os seus telhados vermelhos se inclinando em direção às águas mansas da lagoa.
Suas casinhas antigas com janelas debruçadas para a calçada são uma verdadeira festa para qualquer fotógrafo.
No município de Marechal Deodoro, a uns 10 km em direção ao mar, fica a famosa praia do Francês (foto acima). Revelada ao mundo na década de 1980, assim como tantas outras preciosidades do país, transformou-se em um destino que hoje chamamos de “turismo de massa”. Entretanto, a sua beleza resiste. E se essa antiga vila de pescadores, atualmente um confuso aglomerado de “predinhos” e lojinhas baratas, te decepcionar, caro viajante, insisto para que mantenha os olhos bem abertos. Assim, terá a chance de apreciar uma natureza ainda em seu estado puro.
Atravessada pelo vento que sopra amainando o sol, a praia estende-se poderosa por quilômetros e quilômetros. E ao distanciar-se das barraquinhas, em poucos minutos, você estará diante de uma praia deserta. Repleta de coqueiros, arrecifes ou ondas fortes, a areia plana e dura garante uma caminhada leve e prazerosa.
O caldinho de sururu é imbatível.
Mais ao sul, quase fronteira com Aracajú, fica Penedo, cujo centro histórico foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1996 (foto acima). Visitá-la pressupõe entrar em contato com uma cidade que respira por conta própria. O cais, com um transporte fluvial diário levando e trazendo a população ribeirinha.
A feira, de segunda a sábado, com seu imenso galpão de venda de carnes, cortadas na hora. A Av. Floriano Peixoto pipocando de gente. A loja Pontos e Contos - já famosa internacionalmente - que vende roupa bordada à mão por um conjunto de bordadeiras da cidade que se inspira em cenas do cotidiano alagoano. Tudo isso prova que Penedo é senhora de si.
A quantidade de igrejas dos séculos XVII ou XVIII na cidade também nos revela sobre o seu status no passado. Conta-nos sobre as formações de quilombos na região. As que mais me chamaram atenção foram: a Igreja Nossa Senhora das Correntes, de 1729, onde escravos fugidos se escondiam para no dia seguinte atravessarem o rio sem deixarem pistas e partirem em busca de seu destino e a do Convento, de 1660, pela riqueza, e a de São Gonçalo Dos Homens Pretos, de 1758, pela imponência.
Ali, a vida simplesmente existe.
Piaçabuçu foi minha última parada. (fotos de abertura e abaixo). Distante 19 km de Penedo, sua população de 18 mil habitantes vive para o rio São Francisco. E em uma hora de barco é possível confrontar o encontro das águas do rio com o mar. Um momento sagrado, onde a Natureza com toda a sua volúpia se exibe para aqueles que, de certa distância, testemunham esse grande feito.
As praias fluviais, as pequenas ilhas e as dunas, com suas piscinas da água da chuva, compõem um cenário inesquecível. A sinuca à beira rio. Os gatos atrás dos peixes escamados pelos pescadores. A criançada dando saltos ao ar para pular nas águas do rio. As roupas no varal. Os moradores sistematicamente sentados defronte as suas casinhas apreciando a vida passar. Os cavalos pastando e as lavadeiras enxaguando suas roupas dentro do rio. Todo esse cotidiano é a prova que há muito pelo que se afeiçoar em Piaçabuçu.
Depois desse “mergulho” no rio, concluí que o Velho Chico, apesar de combalido, continua vivo. Pulsante. Alegre.
Eu, canibalizada, não sou mais a mesma. Voltei possuída.
Fotos: Acervo Pessoal
Miriam Waidenfeld Chaves, apesar de morar no Rio de Janeiro, gosta de frisar que é mineira, da Serra da Mantiqueira. Aposentada pela UFRJ, ela transforma suas viagens em verdadeiras aventuras. E é, principalmente, flanando por horas a fio que descobrindo novos horizontes, ruelas, praias, becos e paisagens. Fotografa tudo. E depois, tudo vira memória.
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