Em meados de dezembro, tive a oportunidade de celebrar o aniversário do meu melhor amigo com uma farra gastronômica fora de casa um pouquinho antes do terceiro lockdown ser anunciado na Inglaterra. Para vocês terem uma ideia de como andam as coisas por aqui, a reabertura dos bares e restaurantes ainda não está marcada, mas fala-se que deve ficar para maio. A sensação era de última ceia.
No clima de incertezas sobre o futuro e muita especulação sobre as próximas diretrizes do governo comendo solta, o aniversariante em questão escolheu o Core by Clare Smyth.
Estávamos diante de uma experiência com tarjeta pré-marcada de adjetivos como incrível, único, inesquecível.
E o que é uma experiência gastronômica dessas que desenrola um rolo de palavras de encher a boca? Te digo o que vale para mim. Ela acontece quando levo para casa algo que mexeu com meu coração. Ou seja, algo que expressou ou provocou algum sentimento. Simples. O que fica na memória é o que toca a gente, não é mesmo?
A lista de detalhes inesquecíveis e de sentimentos guardados desse jantar é robusta. Foram tantos gostos, sensações e emoções que caberiam em vários textos deliciosos, como este aqui.
Um pouco sobre a história de Clare Smyth. Nascida na Irlanda do Norte, Clare é uma chef prodígio reconhecida pelo talento e determinação guiados pela busca ávida de conhecimento só com gente bem grande, os caras do olimpo da gastronomia mesmo.
Clare fez fama como discípula do temperamental Gordon Ramsay. Ela comandou o restaurante que leva o nome do chef popstar no bairro nobre de Notting Hill entre 2012 e 2016 sem deixar cair uma das três estrelas Michelin do local. O currículo vai além e é estelar. Ela já trabalhou na cozinha de ninguém menos que Alain Ducasse (Le Louis XV), Thomas Keller (Per Se e The French Laundry) e Heston Blumenthal (The Fat Duck). Tipo assim, alguns dos deuses da gastronomia contemporânea.
Premiada, badalada, e em ascensão, Clare encarou voo solo em 2017 ao abrir o Core em Notting Hill. Naquele dezembro de 2020, o Core contava duas estrelas Michelin, um feito e tanto para um restaurante tão jovem. No finalzinho de janeiro de 2021 ganhou a terceira e Clare tornou-se a primeira chef mulher britânica a conquistar a tríade. Vale lembrar que apenas 130 restaurantes pelo mundo tem esta posição.
Por mais que Clare seja dura na queda – e tenha um tough skin, como já a descreveram em reportagem, ou seja, com uma couraça danada, até pelos anos com Ramsay -, não deve ter sido nadinha fácil. E deu para sentir isso na nossa noite.
ENFIM, A GRANDE NOITE
Foi necessário um caminhão de suor por trás daquela reserva. Enquanto as vagas desapareciam que nem fumaça de gelo seco, as listas de espera aumentavam em ritmo veloz. Não fossem as restrições e distâncias sociais, certamente aconteceriam cenas de tapas e garfadas em abarrotadas filas. Os londrinos estavam claramente sedentos pelo ato de comer fora de casa depois de... quantos meses mesmo? Já nem sei mais.
Nossa mesa veio junto com uma etiqueta de surpresa, e positiva. Sentamos na ‘chef’s table’ (mesa do chef), posicionada diretamente à frente da cozinha nua, coberta apenas por um vidro, e que deixava à mostra toda a dança da comida. Para um bom comensal, é tipo a primeira fileira do show dos Rolling Stones.
Meus amigos gentilmente me concederam a cadeira de rainha – de frente para a cozinha, de costas para o resto (a plebe, brinco eu, que gosto de stalkear o burburinho das panelas). Esses amigos justificavam assim a presença da louca sem vergonha com a pretensa câmera semiprofissional na mão – eu, óbvio. Me aconcheguei como se avistasse um céu tesudo de algodão doce.
Abrimos os trabalhos com três taças de Blanc de Noirs Ulysse Collin Les Maillons para o brinde, leve, de linda cor e pouquíssima acidez, servido em taças elegantes e modernas, um prenúncio de tudo o que se desdobraria ao longo da noite.
Fomos com o menu Core Seasons, inspirado nos produtos da estação, acompanhado pelo cardápio de vinhos selecionado da casa (£165 + £115). No papel, são sete pratos com nomes e descrições econômicas mas, na experiência, vivencia-se uma ‘churrascaria’ da alta gastronomia. Foram incontáveis canapés e mimos para uma ou duas abocanhadas explosivas em sabor e textura. Fecho os olhos e relembro a cremosidade do canapé de foie gras e Madeira que, juro!, encheu meus olhos d’água. Sou dessas que chora com comida como já falei por aqui..
O menu de Clare brinca com os sabores do mar, da floresta e do campo desfilando técnica e gosto. Para você ter uma ideia da tal simplicidade na descrição dos pratos que comentei acima, o Cheese and Onion (queijo e cebola) leva allium, aged cheddar and onion broth (allium é do gênero dos alhos, cebola e alho-porró; queijo chedar maturado e molho de cebola). E nada te prepara para a complexidade da combinação entre doce, salgado e espuma do prato.
Não consigo dizer o meu predileto. O steamed cornish crab (caranguejo da Cornualha no vapor) é uma reverência a cada parte deliciosa do fruto do mar. A carcaça saborosa estava toda reduzida no pequeno consomé, o zabaione esbanjava o sabor terra da cabeça e a pata, bem, a melhor carne de caranguejo da vida.
Campo e mar, Escócia e Inglaterra beijam-se no que pode ser chamado de prato principal, ´Beef and Oyster´, de carne Wagyu da Escócia (Highlands) e ostra da Cornualha (Porthilly) em um encontro entre os grandes produtores britânicos dos ingredientes.
O campeão no quesito direto ao ponto: the other carrot, ou, traduzido livremente, a outra cenoura. Assim mesmo, sem muita firula. Um dos mais surpreendentes em delicadeza e criatividade, com detalhes escandalosamente meticulosos.
O drinque refrescante de vodca e suco de cenoura que acompanha essa sobremesa te conduz ao o frescor da floresta antes do encerramento oficial, o Core Teser. Servida em uma bandeja alta com delicadas penas envolvidas em material transparente, a sobremesa é uma mistura de crocância e cremosidade que traduz força e equilíbrio.
Um menu lindo e respeitoso, finalizado com mais delicadezas, como uma tartalete de tangerina e chocolate que, confesso, embrulhei para casa e levei na bolsa por falta de espaço, e me refestelei na manhã seguinte, me conduzindo de volta àquele lugar de puro deleite.
Mas, assim, chegar aí não deve ter sido fácil. A pressão da terceira estrela já foi fruto de livro (quem já leu O Perfeccionista, de Rudolph Chelminski?), filme (Ratatouille) e é um fato. Naquela noite, de frente para cozinha, testemunhei um estresse que capturou a minha atenção por alguns momentos. Não vou contar detalhes. Uma coisa é a percepção de quem está do outro lado da bancada, a outra é ali, na beira do fogão e naquele nível. Posso dizer isso com propriedade de observadora bem próxima desse mundo.
Naquela noite, o humano estava ali presente, vivo e intenso, mais do que nunca. Senti o abalo por uma janelinha do tempo, mas nada, nenhum tico, respingou na comida, o que foi impressionante.
Preciso voltar e sentar naquela mesa, ali, naquele lugar. Preciso. Precisamos todos retornar aos lugares que nos emocionam fora de casa. Eles também preenchem um lar que é só nosso, o da experiência.
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