Cada um tem a sua história de Natal. Acho que funciona como algo que cada pessoa traz no peito desde criança. Depois, quando adulto, essa memória afetiva retorna rapidamente nessa época do ano. Não sei se com você é assim: comigo é!
Acho que já contei por aqui que sou filha de pai brasileiro e de mãe da República Dominicana, país caribenho que divide a ilha Hispaniola com o Haiti. É mais conhecido pelas praias paradisíacas, como Punta Cana. Portanto, nunca houve família por parte materna no Rio de Janeiro. Somente contávamos com a família de oito irmãos e agregados paternos.
UM NATAL PARA SER ESQUECIDO
O período de Natal em si já trazia uma carga dramática. Minha mãe, além de estar muito longe da sua família, havia perdido um filho exatamente nessa época do ano. Muito emotiva, a saudade colaborou para a interrupção dessa gravidez de quem seria meu irmão mais velho.
Tempos depois, quando eu nasci, essa família inteira se renovou. Eu sou a mais velha de uma turma que esperava por crianças no seio familiar fazia tempo. Nasci dias depois de uma noite de Natal em um parto complicado, o que fez minhas tias e avó fazerem muitas promessas para Nossa Senhora. Passei boa parte da minha infância as acompanhando em missas e igrejas para o cumprimento das promessas em vários locais da cidade, principalmente na igreja da Candelária. Elas se sentiam responsáveis pela minha vida que vingou depois de choro e espera.
Tudo girava em torno daquela criança que, enfim, sobreviveu, quer dizer eu! E, que estava trazendo de volta a alegria e a renovação à velha casa do bairro tradicional de São Cristóvão na zona norte do Rio. A casa da minha avó foi erguida em 1911. A casa era uma pequena relíquia que guardava a glória dos tempos do bairro onde morou a família real.
O DIA DE NATAL NUMA VELHA CASA DO BAIRRO DE SÃO CRISTÓVÃO
Da casa, lembro do som das tábuas do piso que rangiam, do pé direito muito alto que deixava à mostra parte do forro do telhado, das janelas estreitas e do piso de azulejo hidráulico da minúscula cozinha. Cozinha que só cabia, nos dias de festa, uma das minhas tias. Ela era mais gordinha e mestre da culinária. Nas festas de Natal, assumia o fogão com um talento raro e refinado para aquela família de origem muito simples. Além dela, havia mais 2. Todas sem filhos.
Daí, que todo o restante da pequena casa e do quintal, também, eram ocupados pela preparação da ceia do dia 24. Esse movimento já era uma festa. Acho que até mais interessante do que a noite de Natal. Até porque, invariavelmente, nessa noite minha mãe chorava. Lembrava da dor e da tristeza da perda do bebê e da distância da sua família. E, nós chorávamos com ela.
Vamos lembrar que Internet, Face Time, WhatsApp e, muito menos, telefone para ligações internacionais não existiam para ninguém, muito menos, para gente humilde como era a minha família. Portanto, a saudade batia forte no coração dela. Só o tempo a fez se adaptar melhor a tudo o que de desagradável havia vivido.
Meu pai e meus 4 tios ajudavam no que era possível: carregavam moveis de um lado para o outro, desfiavam o bacalhau e quebravam as nozes e o gelo para as bebidas que eram colocadas dentro de um tonel. Era uma bagunça organizada, se posso dizer assim.
O dia 24 de dezembro era o dia do fechamento dessa preparação da ceia. Elas passavam dias cozinhando. Parecia uma cena de um filme de Almodóvar ou do filme mexicano de 1992 “ Como água para chocolate”. Sem dúvida, era cinematográfico! Aquelas mulheres de temperamento forte, focadas na cozinha e suando muito.
A CEIA DE NATAL NUM DIA DE ANIVERSÁRIO
Para ficar mais divertido e agitado, uma dessas tias fazia aniversário no dia 24 mesmo. Sendo assim, além das rabanadas, ambrosia, sonhos, frutas naturais e secas, pudim de leite, havia, também, bolo de aniversário, docinhos de vários tipos, inclusive, brigadeiros. Sem falar, nos panetones, pavês, pasteis e empadinhas.
Enquanto o pequeno forno dava conta de assar o peru, 2 bocas do fogão tentavam dar cozimento às castanhas portuguesas e às batatas para os bolinhos de bacalhau. As outras 2 bocas precisavam ficar desligadas. Do contrário, nada funcionava. E, minha tia "chef” ficava chateada. Chamava meu pai para tentar consertar o fogão. E, assim seguia o dia.
UMA NETA DE ESCRAVOS E AS RABANADAS PORTUGUESAS
Em meio a fumaças e cheiros, havia muita conversa, cerveja, rabanadas quentes e minha avó. Baixinha, neta de escravos e senhora da casa, demostrava sua felicidade de forma discreta e silenciosa. Avessa a festas, no entanto, adorava o Natal. Amava juntar filhos, filhas, genros e a nora estrangeira, ou seja, minha mãe.
Na minha percepção de criança, eu sentia o quanto aquilo a fazia feliz e agradecida. Sorria de forma suave. Tranquila. Já nessa fase da minha infância, ela era viúva. Meu avó faleceu quando eu tinha 4 anos. Enfim, essas minhas lembranças já não têm a figura dele.
A senhora da casa regia aquilo tudo sem quase emitir um som. Falava pouco, mas mandava muito. Nada se mexia, nada mudava sem a palavra final dela, mas sempre de forma suave. Além de todo o susto que passou por conta da perda daquele que seria o neto primogênito e do meu nascimento complicado, tinha muito orgulho também porque eu carregava o nome dela, Guilhermina.
Além disso, adotou aquela gringa que não falava português, que conheceu o feijão preto no Brasil e que ia aprendendo ano após ano a entender o que acontecia naquela casa no dia de Natal. Muito religiosa, minha mãe se concentrava mais na Missa do Galo, nas orações do dia escolhido para a celebração do nascimento de Jesus e menos nas comidas e bebidas da ceia. Hábitos e culturas diferentes dos dois países ficavam estampados nessa data. Todos iam se adaptando.
Lendo o texto da nossa amiga Ana Vilaça sobre as tradições portuguesas no Natal, lembrei e confirmei o quanto essas influências eram muito presentes naqueles dias natalinos em São Cristóvão. Apesar do nível social e das dificuldades da família, todos faziam questão de fazer uma linda e recheada ceia. O pai da minha avó era português. Ela repetia o que regrava sua casa quando era criança: abundância na mesa. Não media esforços de ter a família junta, feliz e com fartura na mesa, mesmo que custasse mais. Era nítido o esforço de todos para montar uma ceia farta para os padrões da família.
O DIA DE NATAL E A FELICIDADE
A felicidade vinha para a mesa como companheira de todos aqueles pratos deliciosos. É essa tal felicidade de estar junto que mais me faz lembrar daquela casa antiga de apenas 4 cômodos. Lembro até mais dessa felicidade do que dos brinquedos e presentes que ficavam sob a árvore de Natal montada na sala da frente.
Não é um sentimento nostálgico. É uma sensação de gratidão de ter vivido desde pequena esses tempos tão verdadeiramente amorosos em família. Tudo pode passar, menos essa felicidade do aconchego, de se sentir única e, principalmente, em família. No Natal, ser feliz é o que importa. Tem mais esta bela história para vocês acompanharem.
Se você tiver alguma história sobre os dias e as noites de Natal para compartilhar com a gente, acesse o nosso Instagram ou Facebook e, escreve lá!
E, no mais, seja muito feliz nesse Natal! Deixe seu coração de criança trazer as lembranças gostosas e felizes. Como estas aqui.